quinta-feira, agosto 09, 2007

Magnólias e Violinos





“Ele”, cujo o nome deixou desvanecer na memória, só pela preguiça de ser alguém, acordava todas as manhãs com o nascer do sol, só porque se esquecia de fechar as percianas e, por isso, era incomodado pelos raios de luz que incidiam sobre a sua testa de marfim. Calçava uns chinelos rotos pelos anos e rastejava para a casa de banho, imunda, porque também “ele” não gostava do termo “limpezas”, achava-o desajustado e inutil, fosse como fosse, mais cedo ou mais tarde, a casa de banho voltaria de novo a servir de maternidade a bactérias; e não importava se pela casa abundassem ratazanas de todas as espécies e tamanhos, ou baratas, felizmente não tinha vizinhos que o incomodassem com ninharias como essas e podia viver em paz e sossego, porque também “infecções” eram coisas que só aconteciam a essa gente ingénua que não aceita o facto que um dia terá de partir.
Não saía de casa, a sorte tinha-o brindado em ser o único sobrinho vivo de um tio que não tinha mais familia e que, assim, lhe havia deixado a furtuna imensa. A única ocasião que o fazia era para esvaziar a caixa de correio.
Gostava de cartas, na verdade, era o seu único prazer: adorava rasgar os envelopes, sentir o cheiro do papel e da cola que cerrava um presente perpetuado no tempo, adorava prever que palavras de lá sairiam, como sairiam e porque letra sairiam… “Ele” não só as amava, coleccionáva-as!
Certa vez, quando se apraltava para o seu ritual, reparou que por entre o molho de cartas usuais de bancos, água, luz e publicidade, se destacava uma letra miudinha e azul. Não tinha remetente e o destinatário não seguia o protocolo estipulado, antes disso podia se ler: “Para alguém…”.
Estranhou aquele envelope, tinha uma estranha forma e emanava um aroma de ortelã. Talvez fosse um desses mafarricos que nada mais tem para fazer que moer a vida, já gasta, dos outros, com partidas de roubar a paciência. No entanto, havia algo, naquela estranha letra, de encantador, de misterioso; estranhamente, sentiu o seu coração crepitar, só poderia estra a morrer, pensou, porque “Ele” não aprendera o vocábulo “emoção”.
Abriu a carta. Aquela letra miudinha e azulada transformara-se numa letra bicuda e vermelha e o aroma aducicado de ortelã num cheiro nausebundo a sangue; e, todavia, “Ele” não se assustou, fora embebido naquele feitiço duro e cruel, porque aquele alguém não havia escrito qualquer carta, havia escrito com a própria vida, toda e cada letra.
“ Não pertendia este fim. O prelúdio que se faz soar esta noite é toda uma mágoa à própria existência humana. É um descontentamento desmedido de uma racionalidade ilusória e impune faça à nossa brutalidade grotesca animal. Foi o que me aconteceu!
Outrora sabia crescer neste refugio natural, onde o céu ainda se enche de estrelas e a manhã se cobre de um manto verde e florido com magnólias. Sempre amei as magnólias e as estrelas e tudo teria sido perfeito se somente a elas me entregasse…ousei muito mais, desejei a musica, desejei o som daquele violino, desejei o amor de quem o tocava.
Tinha um esbelto encanto e uma soberba presença, poder-se-ia dizer que fora a melhor obra da Natureza!... Ensinava no conservatório, mas todos os fins de semana regressava à sua terra e em todas essas visitas trazia consigo o rechei de novas melodias.
Todos se orgulhavam dele, porque era o mais inteligente que havia, porque sabia tudo acerca de tudo e porque tocava aquele violino; era como se em cada música, aquele pedaço, de madeira e corda, a cada compasso, se metamorfizasse em forma humana. Então, com a devida licença, moldava em si o mais profundo gesto nosso, fezendo-nos Dós e Sis, Rés e Mis; uma odisseia pela alma huamana apaixonada.
Mas, se todos gostavam de escutar as notas do seu violino, eu gostava de venerar aquela alma, absorvia-me naquela existência e enaltecia aquela figura. Sem que soubesse, olhava-o tão profundamente e guardava-o dentro de mim, só para mim…
Passei a segui-lo secretamente, fazia de tudo para lhe fazer notar a minha presença; o que eu mais queria fosse que me tocasse na lívida pele, assim como as cordas daquele violino; eu seria, então a sua sinfonia…
Mas, com efeito, na sua pauta musical só tinha a força para ser a pausa, nunca a nota…
Amar apaixonadamente é um atentado à superioridade Humana! Instantaneamente, ela torna-se maestro e toda a conduta é dirigida em agudos dolorosos…a embuscada começa. A minha então não tardou: estava sucumbida a uma raiva pulsante que chorava um amor sem dono. Naquela noite, compus a sonata mais fabulosa de todas. Na manhã seguinte, procurei-o, levei-o até à floresta. Lá mostrei-lhe a minha obra e pedi que a tocasse. Assim o fez.
Toda a duranção de notas foi respeitada, desde as semi-colcheias às seminimas, a acentuação perfeita, as pausas exactas, e contudo não a soubera tocar! Seria preciso tão mais que um violino para o poder fazer…seria preciso um “amo-te”…e, isso, simplesmente não me poderia dar.
Fechei o compasso, terminei a sinfonia dolorosa com um punhal. Matei-o. Matei-me.
Escrevo agora, pelas ultimas gotas de sangue que me restam, que não há mais ridiculo nem mais poderoso que Amar…
Um beijo de quem parte…
Calam-se os violinos!”
“Ele” chamava-se Amadeu, lembrava-se agora, e nem sempre vivera assim. Fechara-se naquele casarão aquando da morte da sua mulher. Também ela gostara de magnólias e de olhar o céu. No fundo do sótão, ainda guardava todos os seus quadros. Nunca mais ousara tocar violino…ainda se recorda da manhã cinzenta, em que trifante, ela lhe oferecera aquele “stradivarios”. E sem saber escrevia agora estas letras inventadas, de uma história trágica, chamando por ela, saudando o final da sua estadia num mundo que não sabe amar. E porque ninguém já lá vai, quando o encontrarem, Amadeu já será o pó das estrelas, pintado no céu.

1 pegadas:

miguelramos disse...

lindo cris...absolutamnt lindo