quarta-feira, outubro 31, 2007

SÓ.


Sinto que tenho de escolher cada vogal e consoante para a tua história, como se cada uma fosse moldada não mais do que em prata ou ouro. As tuas palavras sempre bordas e tornadas peças únicas; escolhendo-as , cantavas a tua alma e as palavras mais que faladas, saiam-te em notas harmoniosas, ou, como se diz: com conta, peso e medida.
O teu "volto já" falacioso faz-me, no entanto, recordar-te por todos os dias e os quadros que pintas-te põe-me falando contigo, sem que me oiças, sem que eu me oiça, sem que existas...Com o tempo, fui-te fabricando a meu gosto, tanto que já nem sei se és o mesmo. Por vezes, distraído, revelo, a quem me pergunta, que passei a tarde à conversa com um amigo; a gente do prédio olha-me de soslaio, dão a tal palmadinha de compaixão e murmuram em silêncio: "Coitado, já é velho, o que é que se pode fazer?!". Espanta-me tanta ingenuidade pacóvia! Somente me atrevi a atentar contra a implacável solidão. A loucura é o beijo dos sonhos, antes ela...
Cedi as tuas "bailarinas" a uma galeria de arte. Sei que se aqui estivesses jamais o tolerarias, queria-las todas na tua existência pacata e, ainda que nunca tenhamos conversado acerca de tal, também sei que as tinhas tão mais do que meras figuras, geradas por pinceladas, animadas por tintas sobrepostas e interpretadas à luz das funções cognitivas humanas. Saiam-te dos dedos e germinavam na tela, eram-te como deusas veneradas, a que por amor, fazias-te fiel escravo. Bailavam por todo o teu corpo, eram-te o fluído animado que te bombeava o coração. Eu sei...por isso, escutava-te em silêncio, quando me dizias: "Não as criei, criaram-me. Criar-me-ão até ao dia da minha morte!".
E assim foi, sem que tu te podesses apreceber, saltou-te uma do papel e, pintando-se de cores humanas, fez-te crer na vida eterna: quebrou-te o ócio, determinou um tal bailado com passos de amor - os membros entrecruzam-se em paixão, um corpo, dois corpos, um só; a respiração que salta e se transfigura numa melodia ritmada de suspiros céleres, a que se rende o coração, os olhos que se fitam e falam palavras secretas - a que o teu geito lasso se amedrontou. De facto, fez-te bailar...
Vi-te partir, todos os dias, para o conservatório (consegui com que te deixassem assistir às aulas), quando regressavas tinha de te ajudar a trazer todos os oito ou dez retratos que lhe haverias feito em duas horas. De seguida, trancavas-te no quarto porque, como me acabaras por explicar: "é impossível conseguir, sequer, captar um traço suave do seu gesto, tudo é tão perfeitamente harmonioso, que os meus pincéis se definham só por tentar". Ela era muito bonita e tu, meu filho, muito ingénuo!
Os traços inacabados, desordenados e grosseiros que acreditavas ser, faziam-te imaginar que o entendimento claro de ti, seria concretizado na pintura alheia. Nunca te deste ao trabalho de compreender que seria, apenas, necessário recuares alguns metros para veres que, afinal, o teu quadro abstracto era meramente uma paisagem impressionista. Ter-te-ias apreciado tanto como eu o fiz!
Um dia, a bailarina fustigou-te e antes que o teu corpo apaixonado se desse conta de que dançava sozinho, já ela se tinha desvanecido.
Estavas com muita febre, nesse dia. Quando me apróximei, miravas-lhe o rosto, pendurado do lado oposto. Pareceu-me que repetias palavras sem nexo (tu, que nunca foste de as desperdiçar!), contudo, ao fim de alguns instantes compreendi o discurso:
"Estupidamente creio sempre no teu nome como um vácuo sonoro. Ingenuamente, julgo lembrar-te, somente, em versos dum pretérito-mais-que-perfeito. A tua figura é uma memória tão já lembrada que nem em mim se torna real. E, sendo tudo tão serenamente doloroso quanto poderia desejar, nada poderia ser tão penoso: é ver-te diante de mim, real, soberba e distante; é ser-te como o vento - cru, só e comum.". Falando-te desesperadamente, não suportando o teu sofrimento ( e tu nem me escutavas), pregeui-te um estalo, capaz de gravar a minha mão na tua face. Vi-te escorrer uma lágrima, quis apróximar-me, empurraste-me e foste-te embora, num tal "volto já". Ainda corri as escadas, mas em vão, aos poucos superaste-me a vista: perdi-te o rasto. Perdi-o para sempre...
Quando te recuperei, já vinhas pálido e sem vida, abraçado ao corpo inanimado da bailarina.



sábado, outubro 06, 2007


De manhã, de embalo, deambulava pela rua com as horas. Horas que o acompanhavam e o preenchiam aos olhos de quem se tornava conhecido: às sete era um "bom dia, Sr. Joaquim!", a meio da manhã um "Que bom vê-lo, Sr. Joaquim.", à tarde um "Adeus, Sr. Joaquim", à noite um silencioso boa noite de destinatário e remetente análogos. Os lugares tornavam-o distinto e sempre inacabado: na padaria era o "Sr. Joaquim", no café da esquina o "Joaquim, camarada!", no trabalho "Dr. Joaquim"; sem tempo para escolher entre Senhor, Camarada ou Doutor, era à penumbra de todos aqueles que o moldavam que Joaquim se sentia como um esboço cinzento e esborratado... Os traços já gastos de tanto serem apagados, a folha tão amachucada, tão fina e riscada; dali jamais sairia uma obra-prima! E Joaquim olhava para os olhos da gente que passava só para que, enfim, pudesse enxergar, por completo, as obras de quem invejava ser "acabado". Mas, entre "Joaquins de Almeida" , entre "Doutores" e "Senhores" só havia um mundo de mudança e as horas silênciosas que desciam consigo, a rua tão já caminhada, eram o único traço definitivo que pudera encontrar!

quarta-feira, outubro 03, 2007

Diários

"If I lay here If

I just lay here

Would you lay with me and just forget the world?"






22 DE AGOSTO DE 2001



Não basta amares-me na maioria dos dias, era preciso amares-me permanentemente, até nos instantes em que me gritares de ódio (odiares-me, amando-me, seria tão bom consolo; odiando-me, amando-me, serias meu cativo)!
Sei quantos sabores escondem os teus lábios, provo-os audazmente. Não gosto de prová-los ao dizeres-me que"gostas" de mim, nem sequer quando dizes "gosto muito"... Que sabor amargo e aflito!
Gostares de mim não chega, se não for eu de quem gostes mais! Não quero ser especial, se não for única!



Olívia.



"All that I am
All that I ever was
Is here in your perfect eyes, they're all I can see"





22 DE AGOSTO DE 2001



A primeira página é sempre um quebra-cabeças colossal; o ínicio deve ser cuidadosamente estudado porque até o mais ínfimo dos deslizes pode comprometer todo o objectivo, objectivo esse que será de te poder falar e de me fazer falar...
Não percebeste porque foi que te roubei o caderninho que tinhas junto da tua mesa de cabeceira, eu sabia, sim, que não tinhas nada lá escrito( não me julgues tão curioso), a causa foi tão mais nobre do que possas imaginar!... Precisei roubar um pouco de ti, para que, enfim, te podesse alcançar. A nossa presença tornou-se um estreito sem passagem: e se te toco não sentes, e se te falo não me escutas, e se te abraço não te sinto, e se te beijo foges, e se me beijas...
Gostava do tempo em que me olhavas como um arco-íris, sabias-me cada cor, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda...Agora o que tens para olhar? Azul? Lilás? nem vermelho... sou um nevoeiro extenso que te sufoca. Eu sei!
Não te posso amar todos os dias, nem tu a mim. Há dias em que o cansaço me arrasta até um ponto de exaustão e tudo me parece alheio; nesses dias, vagueio, como que sem rumo, e não é a ti por quem chamo...Desculpa, mas há dias, em que simplesmente tenho de me procurar a mim, somente! Das vezes que estou intacto, ainda que na maioria delas goste de ti, creio que me farto de te manter firme e sóbria. Se soubesses como é difícil ter a tua atenção... Foges-me insesantemente, por entre as nesgas dos dedos, que descobres ( vai se lá saber como!), nas minhas mãos cerradas. Quase que chego a esmagá-las para poder comprimir todo o espaço que a matéria da minha carne não preenche!

Esse teu ar taciturno e insatisfeito cansa-me...não posso continuar a respirar por ti!

E, embora assim o seja, recuso-me a desistir porque no fundo sei que gosto demais de ti, Olívia.

E sei também que, muitas das vezes em que te encontro absorta face ao infinito, é porque te destraiste e esqueceste-te que me amavas, sei que te apaixonas muitas vezes, e que muitos dos teus sorrisos não são para mim, não podem ser sempre não é?
Então, de todas essas vezes, gesticulo e faço piroetas, só para que voltes a olhar para mim, e tu, sua distraída, voltas!
Agora, vamos supor, que estarei desmanchado, partido em cacos, com que força remarei contra corrente?!
Preciso que voltes, que voltes inteira e sem o infinito de que és cercada; preciso que voltes, mas entende que não te posso amar a todo e qualquer instante, que tenho a mão dorida de tanto a apertar; preciso que me beijes e tenhas consciêcia disso; preciso que me reúnas todos esses bocados de mim "pontiagudos" e que coles, devagarinho...Está bem?



Tomás.





"I don't quite know
How to say
How I feel "




23 DE AGOSTO DE 2001



Gostava de perceber tanta coisa nesta relação... Afinal de contas porque é que estás, constantemente, a chamar-me distraída?

Tenho ciúmes de todos aqueles que te tocam!



Olívia.



"We don't need
Anything
Or anyone"






23 DE AGOSTO DE 2001



Sei que, agora mesmo, não é em mim que pensas, de facto nem te deste conta de que continuo no chão, desfeito.
Tens sempre um comportamente tão exemplar e os teus vestidos nem esvoaçam com o vento, é sempre tudo tão impacável! E , afinal de contas, como é possível não entenderes que para entrar nesse teu quarto obscuro só eu? Pára de procuara seja quem for, já encontraste! Idiota!
Vou me fartar de esperar e vou aceitar ajuda de quem vier, garanto-te! Não ias gostar não é?

Porra, amo-te!



Tomás.


"If I lay here
If I just lay here
Would you lay with me and just forget the world?"