Mudara-se não faz muito tempo, não tanto por vontade, mas antes por obrigatoriedade, a tal obrigatoriedade que o fazia acordar celeradamente todas as manhãs, pela alvorada, aquele mesmo ímpeto com que mecanicamente abria a porta do carro para depois se fachar num escritório. Mudara-se por aversão aos quilómetros, pelo prejuízo na gasolina, pelo acréscimo de vocábulos pejorativos, enquanto esperava impacientemente numa recta de trânsito (sem princípio nem fim).
A habitação até era simpática, um pacato prédio situado nos arredores de Lisboa que o permitia estar a pouca distância de tudo, ou melhor, de quase tudo. Um segundo andar direito, foi esta a morada que lhe coube. No primeiro dia em que se instalara convenientemente, conheceu Dona Alinda, senhoria do prédio, mulher dos seus setenta e tais, de perfil atarracado, com umas mãos que acusavam a artrose de longos anos. Rapidamente se apercebeu que conquistar a bondade da senhoria seria imprescindível se quisesse permanecer na sua serenidade; a mulher sabia de tudo e todos naquele prédio e acaso os moradores não preenchessem os requisitos necessários, então metia a mão na anca, aguçava a garganta e a rixa só findava no momento em que nenhum vestígio sobrasse do maldito demónio, como costumava referir. Ficou a saber que, acerca de dois anos, teve ocasião de lá murar um jovem universitário que estudava para veterinária. O rapaz era muito avivado, característica que logo identificou D. Alinda e que depressa lhe fez torcer o nariz e rezar três Ave Marias pela sua"alma desgraçada"; usava um piercing na sobrancelha e gostava de música barulhenta, chegava tarde e a más horas, incomodando-lhe o sono (ou ressonar), a cada dia era uma rapariga nova, todas elas de trajes despenados. A situação desgostava a mulher, cuja mentalidade estagnara desde a altura em que em menina ainda brincava no campo, e sem meias medidas determina a expulsão do moço. É claro que o rapaz não se manteve impávido perante tal decisão, alegou que com a renda sempre paga a cada mês ninguém o poderia tirar dali. Seguiram-se discussões atrás de discussões, quase intermináveis não fosse o estudante ter o infortúnio de lhe dizer que esta era pior que os porcos que estava habituado a tratar e que nem as vacas faziam tanto barulho quando era necessário vaciná-las, quanto ela a gritar. Foi então que D. Alinda arregaçou as mangas, pôs a mão na anca, pegou na vassoura e numa expressão, que dita entre os soluços nervosos, "vais ver se não te apanho meu menino", desatou a correr atrás do desgraçado que nunca mais apareceu se não para retirar os seus pertences, actividade que foi supervisionada pela mulher, pois que afirmava que "com estes não há que fiar". Contudo, os anos levaram-lhe o marido trabalhador e trouxeram-lhe uma reforma mísera que a forçava a aceitar todo e qualquer "mafarrico". Era o caso dos "honrosos" vizinhos do 1º Direito, um casal jovem, apologista de uma vida mundana e leviana e com uma relação um tanto ao quanto controversa. As discussões entre ambas eram dignas de uma novela mexicana: ouvia-se gritos, insultos, desaforos perdidos, choros compulsivos, a materialização de toda a erupção da cena para a porta que a muito custo lá ia se mantendo de pé, um "sai da minha vida", depois um sonoro "Odeio-te!", para depois e tão inexplicavelmente como a briga havia começado, caírem nos braços um do outro num Amor que só visto! O espectáculo cessava com os gestos de desaprovação de D. Alina, que entre outras coisas ia murmurando "aqueles os dois ainda dão cabe de mim, valha me Nossa Senhora!".
Como meio de assinar um tratado de tréguas com a Senhoria, antes que se tornasse imprescindível, Amadeu tratava de sempre cair-lhe nas boas graças. Para isso era fundamental nunca esquecer o "Bom dia", mostrar sempre e a qualquer custo um sorriso, mesmo que o tema de conversa fosse as novas peripécias da novela das nove, jamais hesitar os naprons que lhe oferecia, pois faze-lo seria provocar-lhe um ataque de asma nervoso e proclamar o inicio da terceira guerra mundial. Ter tudo isto sob controlo e sairia ileso!
Mas foi o que havia sucedido na semana passada que o havia trazido a eterna paz; devido a uma ventania tumultuosa, a TV da D. Alina estragara-se no instante mais desapropriado. Eram nove horas. A santíssima novela havia começado e D.Alina furtada do seu mais que tudo! Quando Amadeu chegou, viu-a numa tristeza imensa, quase podia jurar que a pobre coitada havia de cair do vão de escada, por isso correu a seu alcance. A meio fôlego, ela lá lhe revelou a desgraça, arregalando os olhos em pedido de desespero. A cena era digna de tragédia, mas escrita em tom de comédia e tentando não mostrar toda a ridiculariedade de tudo aquilo lá se ofereceu para concertar o aparelho. Doravante, Amadeu era mais que o vizinho, havia-se tornado "no rico menino" de D. Alina.