II
A noite aproximava-se, com ela as 21:30, com ela a presença da misteriosa rapariga, com ela as infinidades que das possibilidades fazem o futuro...li algures acerca do tempo (passado, presente e futuro), dizia o que nunca conscientemente me apercebera ( e inconscientemente?), que a vida é reservada unicamente ao passado e futuro: vivemos no passado e aspiramos o futuro. Cada suspiro, cada palavra dita, cada racionalização é banida do presente por uns tais milissegundos e que nos fazem, de uma certa forma seres irreais (dizer que neste momento "estou vivo" é mentir tão descaradamente quanto o é permitido fazer). E tu, rapariga misteriosa, que fazes neste passado? que farás no exacto segundo seguinte? nem tu o sabes...Talvez se agora lesses os meus pensamentos e achasses tais ideias absurdas, rir-te-ias de mim, chamar-me-ias palerma ( e com razão). Tenho o hábito repugnante e presunçoso de impingir em todos os meus diálogos ou monólogos, citações e opiniões alheias, faze-las crescer de vivacidade à medida que discorro como se partissem da combustão do meu próprio pensamento, tentando inutilmente que me julguem culto, coisa que não sou. Inevitavelmente farei o mesmo contigo, isto se te conseguir encontrar... "Enquanto te esperava morri (...)" de tanto olhar o teu bilhete, olhar não, ver (porque quem olha não vê), tenho a frase presa aos lábios, sabes quantas vezes já a proferi? Inúmeras. Saber o que te vai na alma e perceber o que efectivamente escreveste. Sair da metáfora. Quero vê-la!
O relógio marca as nove horas (deveria dizer "o relógio marcou nove horas", o presente não existe), pego nas chaves do carro, como um bom consumidor não poderia deixar de ter carro, saio de casa, vou para o CCB. De imediato chego, vantagens de morar nos arredores, olho para todos os cantos, procuro-a sem saber o significado do pronome pessoal feminino "a" (eu não te conheço). Dirijo-me para a bilheteira, falavas em "valsa" logo achei como possibilidade estares-te a referir a um concerto de música clássica; a confirmação: de facto, hoje às 21:30 haveria um recital de piano de cinco pianistas prestigiados portugueses, três deles homens e duas mulheres (a ignorância musical: os nomes soavam-me a notas desconhecidas)...Estava em frente a um grande piano e não sabia como nele tocar. Mesmo assim arriscaria, peço por um bilhete, já não há, esgotaram a semana passada. Ignoro as sugestões que me são feitas, ao que parece nó próximo mês, haverá um concerto recomendável, uma orquestra mundialmente conceituada...Desliguei, recusei-me a ouvir o quer que fosse...Amadeu, homem triste, professor frustrado, a crer em probabilidades escassas, em hipóteses absurdas, devias era ter ficado em casa corrigir os benditos testes!
Abandono o recinto, com a pressa havia deixado o carro mal estacionado, como explicar se me passassem uma multa? "Sabe, é que eu com a ânsia de encontrar uma rapariga, que vi uma vês num café e que por acaso deixou um bilhete, que por acaso eu trouxe comigo e.."Situação surrial Amadeu! Apesar da melancolia ainda me atrevi a vislumbrar o céu, vestiu-se com o luar e as estrelas, tive de admitir: estava de facto uma noite aprazível. Não sei quanto tempo perdera eu fitar a lua, mas foi o necessário para me esquecer do carro e da hipotética multa. Se vivesse no Alentejo viria muitas mais estrelas, isto porque lá não há tanta poluição (hoje já todo o lugar está contaminado). Quem sabe se não me mudo para lá, quem sabe se...oiço uma suave melodia, ela cresce à medida que lhe dou mais atenção, decido investigar. Aproximo-me: de costas uma rapariga com um violino, é ela que faz a música do violino ou é este que lhe toca a pauta da alma? Sinto-me tentado em perguntar, contudo a minha incautolosa curiosidade fez com que tropeçasse numa pedra da calçada solta e rapidamente denunciasse a minha bisbilhotice.
Olhou-me com espanto, eu tentava levantar-me o mais discretamente, desejando que não percebesse que a escutara, que a ouvira, pior, que lhe tentava decifrar a alma. Aproximava-se, o reflexo da lua fez com que pudesse observar mais claramente o seu rosto. O assombro da descoberta: encontrei-te mulher mistério! A euforia que me avassalava, confundia a minha capacidade cognitiva, muito tremulamente tirei o bilhete das calças, dei-lho, ela de imediatamente reconheceu-o, perplexa trocava olhares furtivos entre mim e o bilhete. Eu sem saber o que fazia, ela sem saber o que dizer. Eu desejava deixar de ser Amadeu, embrenhar-me de quem era, para envergar a identidade desaparecida que tu esperavas. Tu só querias que eu fosse outro, o outro...
Foste-te embora naquela noite de luar, nem uma palavra chegamos a trocar; ficaste-me no passado, eu ainda penso em ti no futuro, foste como o presente: um mero sonho...