"Penso, logo existo." declarou Descartes, em tom axiomático. De facto, o homem carrega no próprio pulsar do coração uma história evolutiva milenar que o tornou num ser analítico e racional, capaz de arquitectar associações simbólicas complexas, proceder a uma auto-análise e, sobretudo, ter consciência da sua existência. Oferecem-nos a visão clara de que somos seres transitórios e, de imediato, passam-nos para as mãos o testemunho do livre arbítrio, a partir do qual nos é dada total responsabilidade acerca da nossa conduta. Somos confrontados com a jornada atribulada de nos guiarmos e, simultaneamente, inquietados com todas as incongruências morais e éticas dum ser pensante que procura a auto-definição e, numa perspectiva mais abrangente, a felicidade.
De uma forma genérica, sucumbimos a uma de duas opções: ou levamo-nos pela embriaguez da inconsciência, ou tomamos a vida de olhos abertos e consciêntes, que se comprometem a ver atento o mundo, em oposição ao olhar plácido da anterior, mas com a certeza que as frustrações serão isso mesmo, frustrações, incapazes de serem adornadas pela ingenuidade anestésica da inconsciência. E, sendo assim, qual o caminho mais seguro? Qual o menos traiçoeiro, o menos violento? E qual o mais gratificante? Mas, sobretudo, qual o mais feliz?
A dúvida surge e mais violentamente ainda no espírito desfragmentado de Pessoa.
A sua poesia é um exercício claro de intelectualização, joga com simbolismos e tece toda a teoria de um fingimento artístico, que não deixa sombra de dúvida quanto à sua faceta analítica. Tudo nele é dolorosamente pensado e mesmo Caeiro, o heterónimo pelo qual desejou escapar às mordaças do pensamento, admite que "pensar incomoda como andar à chuva", deixando escapar a sua frustração. Fernando Pessoa sente o conhecimento como uma premissa que, instintivamente, vai desembocar na fuga da felicidade pois se, como afirma, o passado não existe, o futuro não nos pertence e o presente é só o elo de ligação dos dois tempos, sentir a felicidade conscientemente é sabe-la fugir por entre os dedos; o tempo não para e com ele passam os momentos fugazes e a felicidade nunca será mais que um instante transitório, pois que sabermo-nos donos dela é, então, vermo-nos passado, vermo-nos fluir e vermo-nos incertos. Assim:
"Leve, breve, suave
um canto de ave
sobe no ar que principía
o dia
escuto, e passou
parece que foi só porque escutei
que parou"
Fernando Pessoa Ortónimo
E não nos iludamos julgando que a solução está, então, em negar o pensamento. A inconsciência da ceifeira que o poeta elogia é o também adverso à felicidade, dado que não pensar é não existir. De uma forma mais simples, o estado de inconsciência liberta-nos da frustração de saber a vida e todos os estados de alma (incluindo, por isso, a felicidade) precários, mas é também deixá-la correr, sem se quer saber disso. Ser feliz sem o saber, é o mesmo que não ser.
A própria questão de Fernado Pessoa declarar a "pobre ceifeira" como a mulher ingénua que por isso é feliz, passa também pelo facto de a felicidade ser incubida a todo e qualquer sujeito que não ele; são sempre os outros, tema recorrente não só no Ortónimo como os heterónimos(todos "estrangeiros" na própria alma).
Nas palavras de Pessoa, a felicidade é um sonho utópico que se concretiza sempre fora de si.
Quanto à escolha de uma das duas posturas, cabe a cada um, não há forma de rotular e diferenciar uma única como certa. Ainda assim, arrisco-me a apostar na consciência, desde que se tenha o ímpeto de agir até ao fim: saber que tudo se constrói e que, afinal de contas, é só preciso não nos levarem a nossa "nuvem fechada".
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