NINGUÉM
Nas profundezas do alto mar ouvem-se gritos trémulos, nas profundezas do mar alto mataram-se as sereias, trouxeram-se corpos náufragos de alma, nas profundezas do mar alto somos mais que marinheiros, somos menos que Homens, somos capitães há busca de vida...
Há muito que perdi a minha Terra de vista, mesmo antes que esta aceitasse os quilómetros que dela corri, já eu não a achava em mim. Fugiu-me pelas veias...Abandonámo-nos mutuamente. Eu vivia numa barraquita, construída ilegalmente pelo meu pai (pai que já não tenho), com a minha mãe e os meus doze irmãos. Nestes últimos tempos (por lá o tempo não se limita a passar, ele corre com o vento e corre ainda mais célere em ti), a minha mãe adoeceu gravemente, ou por outra: a minha mãe preparava-se para a morte, porque em terra de pobre ninguém fica doente, não o pode fazer, e quem o faz, fá-lo com o termo bem vincado no corpo; ou se vive, ou se morre. Já todos trabalhávamos, mesmo as crianças, todos trabalhávamos, todos sucumbíamos à fortuna da não identidade: não éramos, jamais seríamos Humanos, limitávamo-nos ao título de seres à luta pela sobrevivência. Não sonhávamos, não conversávamos, não brincávamos; deambulávamos, matávamo-nos por um pedaço de pão. Quando a minha mãe por fim faleceu, enterramo-la no quintal. Fui eu e o meu irmão mais velho que cavamos a vala, eu via como a humilhação lhe escorria pela cara, como fazia a todos nós..."Merecias mais do que um buraco no chão, mãe, merecias o mundo inteiro em lágrimas!", exaltávamos esta frase no silêncio da mágoa, mas não a proclamamos...ninguém se atrevia a falar, pois no exacto segundo que o fizéssemos seriam gritos de dor: fala-se do que se conhece e por lá é tudo quanto é comum. Foi então que prometi a mim mesmo: comigo será diferente!
Hoje, num barco tão mais do que pequeno, à deriva no oceano, somos 14, metade do que fomos, não sei se chegarei vivo. Ironicamente, deixei a morte sentenciada pela morte de quem ousa ambicionar...é caso para dizer que não me arrependo!
Calculamos mal os suplementos alimentares necessários, agora só resta uma bolacha por cada dia, a cada um, e a água bebemo-la do mar. Já todos gritamos com todos, quando a sorte tende a se perder o hábito é procurar um culpado, no entanto mantemo-nos todos unidos à fé de chegarmos intactos a melhor pátria, de uma maneira ou outra sabemo-nos irmãos no mesmo sonho.
Vi quem morresse à fome por um sonho, vi quem endoidecesse por ele e por ele se matasse. O sonho de sermos Alguém vale a vida de quem não é Ninguém!
2 pegadas:
tá lindo cris...quando leio os teus textos eles tocam-me profundamente, prendendo as palavras dentro de mim para não sairem. Ou então não existem mesmo palavras para os descrever...
mais um texto lindo e q me tocou profundamente !
gosto muito de ti *
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