"O homem primeiro tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará"
"(...) os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer, isso mesmo fizemos com o cérebro, se a ele fizemos, a elas faremos (...)"
" O tempo, ás vezes, parece não passar, é como uma andorinha que faz o ninho no beiral, sai e entra, vai e vem, mas sempre à nossa vista, julgaríamos, nós e ela, que iriamos ficar assim a eternidade, ou metade dela, o que já não seria mau. Mas, de repente, estava e já não está, mesmo agora a vi, onde é que se meteu, e se temos à mão um espelho, Jesus, como o tempo passou, como eu me tornei velho, ainda ontem era a flor do bairro, e hoje nem bairro nem flor. Baltasar não tem espelhos, a não ser estes nossos olhos que o estão a ver descer o caminho lamacento para a vila, e eles são que lhe dizem, Tens a barba cheia de brancas, Baltasar, tens a testa carregada de rugas,Baltasar, tens encorreado o pescoço, Baltasar, já te descaem os ombros, Baltasar, nem pareces o mesmo homem, Baltasar, mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra, agarram-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de se ver, agora que eles estão juntos até os nosso olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos."
Excertos retirados do Memorial do Convento, de José Saramago.
Viessem Baltasar e Blimunda perguntar se hoje voamos, viessem eles cheios de sonhos e de vontades, viessem com esse amor de corar Mafra inteira e quem diz Mafra, diz todo o Portugal e, quem sabe, se não o mundo todo...Que não viessem Eles! O maior "ai!" das desgraças, dizer-lhes que hoje, antes de voar, há que sonhar; há que lembrar o saber sonhar...
Olha-los-íamos no soslaio olhar de desejo e pensar: "Raios! Soubesse eu ser-lhes igual...soubesse eu amar assim...", enquanto, por despeito, lhes viraríamos as costas, negando-lhes a presença de existência, porque longe da vista, longe do coração, e quanto mais Baltasar e Blimunda forem personagens de um memorial, mais somos livres de viver sem "vontade".
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